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O Brasil à margem da revolução das cidades


Rodrigo Tavares

Quando está animado ou quer impressionar, Geraldo Alckmin pega um livro de Ulysses Guimarães, guardado numa gaveta de sua mesa de trabalho no Palácio dos Bandeirantes. Os dois têm em comum mais do que o gosto por governar – assim como Rodrigo Maia e Renan Calheiros partilham mais do que a condição de investigados pelo Supremo Tribunal Federal. Os quatro políticos têm, como sobrenome, nomes de cidades. Ao desembarcar no Brasil, seus patriarcas adicionaram o nome dos lugares onde nasceram, numa tradição que vem da Grécia Antiga. Tales de Mileto ou Pero Vaz de Caminha construíram sua identidade individual em consonância com o lugar de origem de suas famílias. Não o país, mas a cidade.

Com o tempo, os países se afirmaram como ponto cardeal da organização política. Porém, mais recentemente, entidades subnacionais voltaram a ganhar pujança. Desde 2009, mais de metade da população mundial é urbana. Das 30 maiores economias do mundo, 13 são de cidades ou regiões. O estado de Guangdong, na China, é mais rico do que a Indonésia ou o México. Pesquisas indicam que a população confia mais em governantes locais do que nacionais. É nas cidades que a cidadania é vivenciada. O ex-governador de São Paulo Franco Montoro tinha razão quando dizia que “ninguém vive na União, as pessoas vivem no município”.

O movimento global pela descentralização, iniciado na década de 1980, ganhou novas dimensões. Dinamarca, Suécia, Estados Unidos, Alemanha e Espanha são referências nesse quesito. Em junho, poucas horas depois de o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, anunciar a retirada do país do acordo climático de Paris, vários prefeitos americanos, como de Los Angeles, Chicago ou Nova York, se comprometeram a manter suas metas. Se as cidades contribuem com 70% das emissões globais de gases de efeito estufa, os governos locais terão de fazer parte da solução. Até o primeiro-ministro de Portugal, país com apenas 11 milhões de habitantes, tem exortado o Parlamento a aprovar leis que permitam acelerar a descentralização de competências para as cidades. “Estamos perdendo tempo,” disse.

Essa tendência embaralha a forma como estamos habituados a nos governar. Passaremos de uma realidade hierárquica e vertical, com a coroa do poder guardada na capital, para uma estrutura baseada em redes e em proximidade geográfica. Metrópoles vão se assemelhar cada vez mais a pequenos países, apenas sem Exército ou alfândegas. Curiosamente, a primeira Constituição da Califórnia, de 1849, concedia ao governador o poder de chefiar “o Exército e a Marinha do estado”, mas seria inverossímil algo semelhante voltar a ocorrer.

O Brasil não virou as costas ao movimento pelo poder local. Desde a Constituição de 1988, os municípios brasileiros usufruem de mais autonomia. Aumentaram suas receitas (de R$ 477 bilhões, em 2013, para R$ 552 bilhões, em 2016) e sua capacidade de geração de recursos próprios (de 31% para 35% do total das receitas, entre 2013 e 2016). Ainda assim, dados da Muove Brasil, uma startup que reúne e compara uma grande quantidade de informações de municípios brasileiros, indicam que, apesar da autonomia crescente, as cidades brasileiras ainda não se tornaram epicentros de desenvolvimento econômico, qualidade de vida e preservação do meio ambiente. Isso se deve a um grande número de razões. Destaco duas. Em primeiro lugar, os municípios têm baixa capacidade de investimento. Gastos são majoritariamente com custeio (94% no ano passado), limitando o desenvolvimento competitivo. Prefeitos gastam com cesta básica, não com complexo vitamínico. Em segundo lugar, como salientou Rodolfo Fiori, presidente da Muove, “os municípios têm baixa capacidade institucional para lidar com problemas de alta complexidade, como planejar e executar uma estratégia de desenvolvimento econômico”. Entre os funcionários públicos municipais, 59,7% (3,3 milhões) têm apenas o ensino fundamental ou médio. Aqui reside o gargalo das cidades brasileiras. Não falta autonomia. Falta capacidade institucional. O Ministério das Cidades, criado em 2003, tem servido apenas como ponto de ônibus para políticos transitarem pela rota do poder. As cidades brasileiras se parecem com os gigantes retratados por Mark Twain e J.R.R. Tolkien: colossais em tamanho, mas desajeitadas nas maneiras.

Se dentro do Brasil a pujança econômica de São Paulo é inquestionável, estudos internacionais destacam que a cidade tem perdido competitividade. O Índice de Centros Financeiros Globais, que contabiliza do ambiente de negócios à qualidade do capital humano, coloca São Paulo apenas na 62a posição (caiu 11 lugares desde o ano passado), num ranking liderado por Londres, Nova York e Cingapura. O poderio financeiro de São Paulo fica atrás de cidades reconhecidamente opulentas como Edimburgo, Johannesburgo ou Varsóvia. O Índice de Poder Global de Cidades, que também integra indicadores econômicos e de infraestrutura, coloca São Paulo no 38o lugar (entre 42 cidades), atrás da Cidade do México. Em outro índice, o de Cidades Globais, São Paulo perde para Buenos Aires. Infraestrutura de mobilidade urbana limitada, frágeis políticas de fomento a inovação e tecnologia, burocracia empresarial (tanto federal quanto municipal) e insuficiente capital humano de qualidade empurram São Paulo para o fundo da tabela.

Se colocarmos esses índices na lâmina do microscópio, constatamos que algumas cidades têm galgado degraus, como as chinesas Hong Kong, Pequim, ou Xangai, e principalmente Melbourne, na Austrália. Tornaram-se atraentes para residentes, turistas, investidores. Segundo o prefeito de Melbourne, Robert Doyle, no cargo desde 2008, a cidade, ao longo dos anos, acabou se tornando antropocêntrica. Tal como no Renascimento italiano, as pessoas são seu principal referencial. Uma das políticas de que Doyle mais se orgulha é o Postcode 3000 (algo como CEP 3000) – uma estratégia de longo prazo, centrada em incentivos e em desenvolvimento urbano, para atrair negócios e pessoas ao degradado centro da cidade. “Criamos uma comunidade para pessoas em vez de um centro de negócios monofuncional”, disse ele, por e-mail. Nos anos 1980, circulavam diariamente 600 pessoas pela região. Hoje são 40 mil. “Postcode 3000 foi um sucesso porque foi uma ideia inspiradora, não custou nada à prefeitura e estava focada nas pessoas”, afirma. Em São Paulo, os novos centros de negócios – a Berrini e a Faria Lima – são áreas esvaziadas nos fins de semana.

A cidade que ocupa o coração dos brasileiros não chega aos calcanhares de outras cidades nas estatísticas de turismo internacional. O Rio de Janeiro recebe apenas 1,4 milhão de turistas por ano, ficando no 71o lugar, entre 100 cidades de interesse turístico incluídas no estudo Global destinations cities index. Apesar do potencial turístico quase ilimitado, recebe menos estrangeiros que Düsseldorf, na Alemanha, ou San José, na Califórnia. O Rio de Janeiro é vítima dos entraves ao turismo no Brasil. Infraestrutura ruim, agências públicas e ministérios que operam segundo interesses pessoais, desvios de recursos, falta de ambição e de planejamento de grande prazo ou mão de obra pouco qualificada para receber estrangeiros. Com tudo isso, o Brasil recebeu, no ano da Olimpíada, menos turistas do que a Torre Eiffel. No caso do Rio de Janeiro, a variável adicional é a insegurança. Uma pesquisa da Confederação Nacional do Comércio mostrou que, somente de janeiro a abril deste ano, o setor turístico perdeu quase 9 mil postos de trabalho e R$ 320 milhões em receitas devido à criminalidade.

Em fluxo contrário está Lisboa. A cidade mais que duplicou o número de turistas em dez anos, num crescimento particularmente acentuado a partir de 2013. Portugal sempre foi um país que atraiu visitantes, mas o crescimento repentino dos últimos quatro anos surpreendeu os próprios portugueses. Num esforço coordenado entre agências nacionais e municipais, o país mudou o paradigma. A partir de 2013, todo o orçamento do departamento de turismo de Portugal destinado a campanhas no exterior passou a ser usado em campanhas on-line. A prefeitura de Lisboa, então com cores políticas diferentes do governo nacional, acompanhou a estratégia. Morreram os outdoors, a propaganda nos jornais e na TV, os panfletos nos transportes públicos ou aeroportos. A segurança, um ativo que o Rio de Janeiro não tem, obviamente ajudou. Lisboa tornou-se o lugar onde celebridades como Madonna, David Beckham ou Monica Bellucci são vistas caminhando tranquilamente.

Isso ainda não acontece em Medellín, na Colômbia, mas a cidade caiu de uma taxa de 178 homicídios por 100 mil habitantes, em 2002, para 19, em 2016. O estado do Rio de Janeiro tem 30. Para Federico Gutiérrez, o jovial prefeito da cidade, a redução da violência se deve a um cardápio de políticas. “Segurança é um assunto complexo, tem de ser abordado de diversos ângulos. Fizemos parcerias com o setor privado, programas sociais em educação ou habitação e iniciativas que reforçam a participação da comunidade. Nossas políticas também prezam o planejamento de longo prazo. Investimos para melhorar nossa infraestrutura de segurança, que inclui desde a coordenação até o enfrentamento”, disse-me Gutiérrez. O Rio de Janeiro, em estratégia oposta, optou quase exclusivamente pelo caminho da militarização.

Em 1950, a população rural no Brasil era muito maior do que a urbana. Atualmente, 85% dos brasileiros vivem em cidades. Essa explosão de pessoas tornou nossas cidades desconfortáveis, inseguras, feias e privatizadas. O Brasil não é, na verdade, muito diferente de outros países emergentes ou de renda limitada. Mas exemplos do exterior, tanto de países ricos quanto pobres, demonstram que é possível termos melhores políticos e políticas.

 

Publicado originalmente na revista Época.